segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

VALORIZAÇÃO DA VIDA HUMANA - 6º PRINCÍPIO DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

Princípio VI. O valor da vida humana


VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.

O princípio de atuar em benefício do ser humano novamente se faz presente. É a grande bússola da ação médica. E aqui há uma clara referência à não-maleficência.

O bem inclui a proteção contra o sofrimento físico ou moral, a proteção da vida humana e a proteção da dignidade e integridade.

Na antiquíssima tradição hipocrática e em seu desenvolvimento ao longo da era cristã até os dias de hoje, a medicina que permanece leal à sua verdadeira vocação sempre protegeu a vida humana, reconhecida como sagrada.

No Juramento de Hipócrates, o valor da vida humana foi ressaltado com a proibição do aborto ou do término intencional de uma vida:

(...) não darei, a quem pedir, nenhuma droga mortal, nem recomendarei essa decisão; do mesmo modo, não darei a mulher alguma pessário para abortar.[1]

Em meio ao relativismo de sua época, os médicos hipocráticos da antiga Grécia subscreveram os preceitos pitagóricos de sacralidade da vida humana e mudaram a forma de compreender a medicina.[2]

"Pela primeira vez em nossa tradição houve uma separação completa entre matar e curar. Ao longo da história do mundo primitivo, o médico e o feiticeiro normalmente eram a mesma pessoa.
[Médico e feiticeiro] tinham o poder para matar e o poder para curar... 

Com os gregos, a distinção entre ambos ficou clara. Uma profissão, a dos seguidores de Esculápio, deveria dedicar-se completamente à vida sob todas as circunstâncias, independente de classe, idade ou intelecto - à vida de um escravo, de um imperador, de um estrangeiro, de uma criança deficiente...

Esta é uma dádiva sem preço que não podemos arriscar que se corrompa. Todavia, a sociedade está sempre tentando transformar o médico num assassino - para matar a criança deficiente ao nascer, para 'esquecer' as pílulas soníferas ao lado do leito de um paciente com câncer (...). É dever da sociedade proteger o médico de tais demandas."[3]

Ao longo da história da medicina em nossa civilização, por várias vezes o médico não foi protegido de tais demandas. Atuou no extermínio de seres humanos e se esqueceu de sua verdadeira lealdade. Na medicina comunista atuou em prol do Estado e da Revolução, auxiliando na perseguição política e no combate a determinados grupos socialmente mal vistos.[4] No nazismo, os médicos exterminaram judeus, prisioneiros de guerra, eslavos e ciganos em prol do bem da “raça” ariana e do progresso científico.[5]

Hoje a nova vítima a ser sacrificada no altar do hedonismo humano ou do utilitarismo social vulgar é o feto e a criança. Movidas por lemas construídos por abortistas do século passado com o objetivo específico de legalizar procedimentos abortivos que nutririam seus negócios milionários[6], mães correm aos médicos solicitando que respeitem seu direito de escolha e que sejam cúmplices no assassinato de sua prole. O assunto é amplo, e a discussão ao redor do aborto e do homicídio infantil é complexa e inflamada, mas a pressão para que o médico assuma o papel de executor da próxima geração é intensa.

Chegamos ao disparate de novamente observarmos a defesa explícita do homicídio de crianças recém-nascidas, como nos tempos da antiga Esparta. É a morte da medicina hipocrática.[7]

Mesmo em obras de qualidade e referência acerca do Código de Ética Médica, oculta-se a ligação filosófica e histórica deste preceito com a defesa da vida humana em todas as suas manifestações.[8]

Contudo, ao olharmos na triste história do século XX, talvez por causa de tantas tragédias, diversas declarações internacionais atestaram a necessidade de reafirmar a sacralidade da vida humana e de protegê-la desde sua concepção, como se observa no Código Internacional de Ética Médica de 1949 (conservar a vida humana), na Declaração de Genebra durante a Assembleia Geral da Associação Médica Mundial (mais alto respeito pela vida humana desde a concepção) e no Pacto de San José da Costa Rica (respeito à pessoa, definida por sua vida humana desde a concepção).[9]

Aos poucos, todas as lições apreendidas ficam para trás, as declarações são deturpadas, os juramentos e preces médicas são esquecidos, e a vida humana volta a ser alvo de extermínio. E o médico volta a ser empurrado para o antigo e profano papel de executor.

No Brasil, mesmo entre os médicos, há forte pressão para legalização do aborto, assim como ainda restam muitos que, felizmente, se posicionam ao lado da tradição hipocrática.[10] Mesmo nos países onde o aborto já foi liberado, a disputa entre visões de mundo prossegue.

Não é de se estranhar que vivamos uma constante tensão entre duas visões de mundo nas quais o valor devido à vida humana é uma das características diferenciadoras.[11] Cabe ao médico refletir qual o papel que deseja ocupar e como deseja ser lembrado.

Nessa batalha de valores e cosmovisões, a bioética tem exercido um papel controverso. Se, por um lado, ela despertou o diálogo e o debate acerca dos fundamentos da prática médica e a promoção de uma atenção à saúde mais qualificada em prol do paciente, por outro, tem servido ao desmonte da moralidade comum à civilização nascida de preceitos judaico-greco-cristãos. Algumas escolas bioéticas concentram suas interpretações e análises em focos eugenistas e utilitaristas, nos quais a vida humana nada tem de inerentemente digno. O que decorre de tais princípios anti-hipocráticos a história já nos mostrou.

A moralidade comum tradicional, como seu nome sugere, compreende princípios éticos comuns às culturas civilizadas. A noção de que há certos princípios objetivos, os quais devem ser respeitados pelas sociedades qualificáveis como civilizadas, tem sido expressada por meio do Juramento de Hipócrates, da moralidade Judaico-Cristã, da proibição contra o assassinato do inocente e da lei comum... [Mas] boa parte da bioética moderna é claramente subversiva em relação a essa tradição de moralidade comum. Ao invés de promover o respeito pelos valores e direitos humanos universais, a bioética moderna busca subvertê-los sistematicamente. Na bioética moderna, nada é, em si mesmo, valioso ou inviolável, a não ser a utilidade.[12]

Diante disso, cabe ao médico adentrar na discussão bioética com propriedade, na busca da qualificação intelectual. O que não é desejável é a entrada ingênua no campo de discussão ou a simples ignorância.

Há pouca percepção pública ou profissional (ou política) acerca do fato de que a função de boa parte do trabalho atual da Bioética é totalmente diferente do que tradicionalmente se associa com a palavra "Ética" na medicina - o julgamento de práticas e propostas em acordo com os princípios estabelecidos de conduta. Em contraste, um papel central da Bioética tem sido a criação de novos princípios de conduta que permitirão a prática de coisas que antes eram proibidas.[13]

Ao examinar a bioética atual, o médico deparar-se-á com excêntricas figuras que atuam de forma sistemática para a derrocada dos valores que fundaram a prática médica, para a desvalorização da vida humana e para a destruição da percepção de dignidade; coisas tão caras à nossa prática.

Este princípio nos convoca a defender a vida humana e sua dignidade contra o extermínio e a maleficência.



[1] Fontes consultadas: (1) RIBEIRO Jr., Wilson A. Juramento. In: CAIRUS, Henrique F., RIBEIRO Jr., Wilson A. Textos Hipocráticos: o Doente, o Médico e a Doença. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005, p. 151-167; (2) JONES, W.H.S. (Tradutor). Hippocrates Volume I (Loeb Classical Library). Cambridge & London: Harvard University Press, 1923, p.289-302. ο δσω δ οδ φρμακον οδεν ατηθες θανσιμον, οδ φηγσομαι συμβουλην τοινδε· μοως δ οδ γυναικ πεσσν φθριον δσω.

[2] EDELSTEIN, Ludwig. TEMKIN, Owsei; TEMKIN, C. Lilian (ed). Ancient Medicine: Selected Papers of Ludwig Edelstein. Baltimore & London: The Johns Hopkins University Press, 1987.

[3] Trecho da obra de Margaret Mead citado em: MARKER, R. et alEuthanasia: a historical overview. Maryland J Contemporary Legal Issues. Vol 2, 1991, p. 257-298.

[4] VAN NOREN, Robert. Ending political abuse of psychiatry: where we are at and what needs to be done. BJPsych Bulletin (2016), 40, 30-33, doi: 10.1192/pb.bp.114.049494

[5] CAPLAN, Arthur L. When Medicine Went Mad: Bioethics and the Holocaust. Totowa, New Jersey: Humana Press, 1992, 359p.

[6] NATHANSON, Bernard N. The Hand of God: A Journey from Death to Life by the Abortion Doctor Who Changed His Mind. Washington, DC: Regnery Publishing, Inc., 1996; NATHANSON, Bernard N. Aborting America:  A Doctor’s Personal Report on the Agonizing Issue of Abortion. Fort Collins, CO: Life Cycle Books, 1979.

[7] ANGOTTI-NETO, Hélio. A Morte da Medicina. Campinas: VIDE Editorial, 2014.

[8] Como pode ser observado na obra de Dantas e Coltri, no qual muito se fala da dignidade humana, inclusive acerca da necessidade de que o médico se posicione claramente contra a tortura, porém, curiosamente, nada se fala a respeito da sacralidade da vida humana e da necessidade do médico em proteger o feto e a criança. DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos; COLTRI, Marcos Vinicius. Comentários ao Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 1.917 de setembro de 2009. 2ª Edição atualizada até julho de 2012. São Paulo: GZ Editora, 2012, p. 17.

[9] FRANÇA, Genival Veloso de. Comentários ao Código de Ética Médica 6ª edição. Rio de Janeiro, RJ: GEN Guanabara-Koogan, 2010, p. 21-22.

[10] PEREIRA, Sandra Helena. ‘Posição do Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo (CRMES) e do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o abortamento voluntário’. In: Mirabilia, Medicinae 1, 2013, p. 7-12.

[11] WIKER, Benjamim. Darwinismo Moral: Como nos tornamos hedonistas. São Paulo: Paulus Editora, 2014.

[12] Entrevista cedida a Wesley Smith reproduzida em: SMITH, Wesley J. Culture of Death: The Assault on Medical Ethics in America. San Francisco: Encounter Books, 2000.

[13] CAMERON, Nigel M. de S. The New Medicine: Life and Death after Hippocrates. Chicago & London: Bioethics Press, 1991, p. 47.